Uma Rússia tropical
O resgate da democracia brasileira prometido por Lula entrou na fase de perseguição à sociedade civil. Isto não é “resgate”, é outra variante de captura.

Há um momento na primeira tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil, em 2003, que me comove sempre: ao passar a faixa presidencial ao seu sucessor, o Presidente Fernando Henrique Cardoso deixa cair os óculos. Lula, instintivamente, interrompe a solenidade de receber a faixa para se baixar e apanhar os óculos ao homem contra quem tinha concorrido duas vezes, perdendo das duas. O ato de transmissão simbólica da Presidência perdeu em majestade o que ganhou em humanismo – e isso sempre me pareceu justo.
A posse de Lula, à sua quarta candidatura presidencial, significou a chegada ao poder de um homem apontado durante anos como uma espécie de ameaça vermelha, num país que havia sido demasiado tempo tutelado por uma ditadura militar de direita. Ao vencer as eleições (e a posse, coisa que na história brasileira nem sempre está assegurada, mesmo depois de vitórias eleitorais), Lula simbolizava a consagração e o alargamento da democracia brasileira, independentemente do que pudéssemos pensar dele e das suas políticas. Aquela posse significava que o Brasil era capaz de eleger um Governo assumidamente de esquerda, sem que isso fosse uma rutura com as instituições e os processos democráticos.
Esses primeiros anos de Lula foram transformadores: os programas sociais dos Governos PT levantaram milhões de brasileiros da fome e da pobreza. Ao mesmo tempo, houve um conjunto de reformas legais e institucionais que criaram condições únicas para um reforço efetivo do combate à corrupção. Foram essas reformas, no final, que apanharam o próprio Lula e os vários casos de corrupção a envolver o Partido dos Trabalhadores. Mas esta nova infraestrutura de integridade pública (e judicial) era frágil demais. Anos depois das primeiras ações judiciais, e da primeira centelha de esperança no combate à corrupção sistémica no Brasil, a principal derrota da Lava Jato foi ter falhado em chegar a conclusões definitivas, claras e consensuais sobre as reais responsabilidades dos envolvidos. Isso aconteceu não só por causa de um sistema à partida frágil no combate aos poderosos, mas também em boa parte por culpas próprias, traduzidas na tóxica politização dos magistrados envolvidos no processo – que teve como corolário a ida de Sérgio Moro para o Governo Bolsonaro. Com tanta peripécia e contaminação política – de esquerda e de direita –, no fim, cada pessoa fica autorizada a acreditar na narrativa que prefere. Não houve uma resolução nacional da Lava Jato – muito menos da corrupção de regime no Brasil.
Bolsonaro foi, em grande medida, o produto desse impasse. Como todos os autoritários que prometem mão firme contra a corrupção, fez pior. Destruiu muitas das salvaguardas legais e institucionais contra o abuso e acelerou a fundo os vícios de enriquecimento ilícito na política, incluindo o seu e da sua família. Neste clima de captura total da democracia brasileira, que foi posta efetivamente em risco, a reeleição de Lula, 20 anos depois da sua primeira chegada à Presidência, era um retorno necessário a alguma normalidade institucional.
Mas o Lula que está de volta não é o mesmo de há 20 anos. O fôlego das grandes reformas anticorrupção desapareceu. Não só não parece estar a avançar o difícil processo de reverter muita da fragilização institucional protagonizada por Bolsonaro, como Lula parece ter adotado a noção do seu antecessor, de que a separação de poderes deve ter tutela política. A nomeação do seu advogado pessoal Cristiano Zanin para o Supremo Tribunal Federal é um sintoma preocupante da politização do poder judicial tornada política pública. Zanin foi ocupar a vaga deixada pelo juiz Ricardo Lewandowski, que se tornou ministro da Justiça e Segurança Pública de Lula, num exemplo das portas giratórias entre justiça e magistratura que em Portugal têm sido objeto de ampla discussão pública, com os sindicatos das magistraturas a liderar a defesa de incompatibilidades estritas entre os dois poderes.
Matar o mensageiro
Este quadro de politização da Justiça brasileira é crucial para perceber a investigação judicial agora lançada contra a Transparência Internacional Brasil pelo juiz do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli. A denúncia que Toffoli considerou fundamentada alega que a TI Brasil poderá ter-se apropriado de verbas obtidas pela Justiça brasileira em vários acordos de leniência com grandes empresas condenadas no âmbito da Lava Jato. No entanto, nas 175 páginas do processo tornado público pelo juiz não há qualquer indício de que a TI Brasil tenha recebido, ou sequer tentado receber, qualquer verba relacionada com os processos judiciais da Lava Jato. Pelo contrário. Em causa está um acordo de cooperação entre a TI e o Ministério Público Federal brasileiro, para desenhar um sistema de governança dos muitos milhares de milhões de reais obtidos no âmbito dos acordos de leniência firmados entre a Justiça brasileira e empresas condenadas na Lava Jato.
O propósito, com amplo precedente em inúmeros países, é que parte dessas verbas fosse aplicada em projetos de controlo social da corrupção, envolvendo a sociedade civil. Foi o que aconteceu com a Siemens nos Estados Unidos, por exemplo. É o que acontece corriqueiramente em Portugal, em casos em que um arguido condenado por conduzir alcoolizado fica obrigado pelo tribunal a financiar uma associação social de apoio a vítimas de acidentes de viação. Qual é então o crime da TI Brasil? Tentar financiar-se com parte desse dinheiro, como acontece em tantas partes do mundo? Nem sequer isso! O acordo de cooperação visava consultar a Transparência Internacional na definição dos modelos de governança desses fundos, para garantir a transparência dos processos e a integridade dos mecanismos de gestão. O âmbito desse envolvimento foi de aconselhamento, produção de conhecimento e recomendação de boas práticas, feito integralmente pro bono. De resto, em vários pontos da documentação citada no processo (e que já era pública há muito), fica especificamente estabelecido que a TI não cobrará quaisquer verbas pelo seu trabalho, nem se candidatará a ser beneficiária desse dinheiro – por causa do óbvio conflito de interesses que isso colocaria. O fundo seria para projetos da sociedade civil, que não envolvessem a TI Brasil.
Que fique claro: protocolos de cooperação entre autoridades públicas, incluindo autoridades judiciais, e organizações da sociedade civil dedicadas ao combate à corrupção e à defesa de direitos humanos, incluindo capítulos da TI, são às centenas ou milhares pelo mundo fora. Como se pode então tirar desta relação pública, protocolada e absolutamente normal entre uma ONG e uma autoridade pública a suspeita de atividade criminal? Com muita má-fé. O denunciante deste caso, Rui Falcão, é deputado federal pelo PT, de que foi presidente até 2017. O juiz que mandou abrir a investigação, Dias Toffoli, foi ele próprio advogado do Partido dos Trabalhadores, de Lula, que o nomeou para o Supremo Tribunal. Nos últimos tempos, como reportou há dias o Financial Times, tem-se dedicado a desfazer o que resta da Lava Jato – nomeadamente anulando acordos de leniência e perdoando multas a várias empresas que se haviam declarado culpadas no âmbito da operação judicial.
A investigação à TI Brasil foi anunciada por Toffoli pouco depois de a organização ter especificamente denunciado o seu pornográfico conflito de interesses. A lógica retaliatória é evidente.
A acusação de apropriação indevida de dinheiro por parte da TI Brasil incide especificamente sobre os 2,3 mil milhões de reais (“bilhões”, na terminologia brasileira) cobrados no âmbito do acordo de leniência da empresa J&F – mais de 430 milhões de euros. Ora, o próprio juiz Dias Toffoli anulou no final do ano passado esse preciso acordo de leniência, entregando à empresa condenada uma benesse multimilionária. Melhor: a esposa do juiz, Roberta Rangel, é advogada da J&F! Em qualquer tribunal decente de qualquer país indecente, esta relação familiar direta com um dos arguidos obrigaria à recusa do juiz. Aqui, parece justificar o favor. A investigação à TI Brasil foi anunciada por Toffoli pouco depois de a organização ter especificamente denunciado este pornográfico conflito de interesses – talvez fosse mais apropriado chamar-lhe “conluio de interesses” –, na sua retrospetiva de 2023 publicada em janeiro. A lógica retaliatória é evidente. É caso para perguntar, quem inquere o inquisidor?
O roteiro russo
Reconheço o que está a acontecer à Transparência Internacional no Brasil. Reconheço-o porque o vi acontecer à Transparência Internacional na Rússia. A lógica é a mesma e o roteiro é conhecido: caluniar, perseguir, silenciar. É esta a velha receita de destruição da sociedade civil livre em países a caminho da autocracia. Foi o que Putin fez à TI Rússia, hoje reduzida a uma organização de ativistas no exílio. Há meses que a TI Brasil tem sido alvo de campanhas difamatórias assentes nas notícias patentemente falsas, mas reiteradamente difundidas, de que teria aproveitado verbas dos acordos de leniência. Esse é o primeiro passo: gerar uma onda mediática de ataque à sociedade civil, atacando a sua credibilidade e procurando ferir a sua legitimidade. E que melhor maneira do que acusar os ativistas anticorrupção de serem eles próprios corruptos? Como o Brasil percebeu no rescaldo da Lava Jato, universalizar as suspeitas de corrupção é a melhor forma de garantir a sua impunidade.
O Brasil entrou agora no segundo passo do roteiro antidemocrático: o uso de bullying judicial contra a sociedade civil. É o que está em causa nesta investigação. É claro que qualquer um pode simplesmente dizer “se a TI Brasil não tem nada a temer, só tem de colaborar com as investigações e nada de mal lhe acontecerá”. Isso faz sentido, à partida, mas ignora a forma como as instituições judiciais e o próprio Estado de Direito podem ser instrumentalizados para servir fins absolutamente contrários à sua natureza. Ainda que a verdade e a prova estejam do seu lado, a mera existência de uma investigação desta dimensão e gravidade é um fator de condicionamento e amedrontamento da sociedade livre, num país em que os ativistas (anticorrupção, de direitos humanos ou ambientais) já correm demasiados riscos, inclusive à sua segurança física e à sua vida. É precisamente por reconhecer como o sistema judicial é tantas vezes usado como ferramenta de bullying contra ativistas, jornalistas e cidadãos que a União Europeia está a legislar uma Diretiva para proteger os europeus de processos judiciais que visam desacreditar, amedrontar e condicionar o livre exercício da crítica e da liberdade de expressão. Na Rússia, foi também por decisão judicial que o capítulo local da Transparência Internacional foi decretado “indesejável” (uma retórica perfeitamente nazi) e acabou efetivamente expulso do país.
O Brasil parece agora estar a seguir o mesmo guião, coerente com a simpatia que Lula da Silva tem demonstrado por Vladimir Putin e os seus muitos crimes na Ucrânia e no mundo. Caluniar primeiro, para depois legitimar a intervenção persecutória do Estado e, no fim, silenciar a crítica e dar um sinal a toda a sociedade do que acontece a quem fala livremente. Isto é francamente alarmante, não só (nem especialmente) para os ativistas da Transparência Internacional Brasil, mas para a democracia brasileira. O mundo vive tempos perigosos para a liberdade. No Brasil, a cada vez mais provável responsabilização criminal de Bolsonaro pelo seu longo rol de abusos é um sinal encorajador. Mas se, em paralelo, a sociedade civil “incómoda” estiver a ser amordaçada, qualquer esperança de justiça para políticos corruptos não passará de um acerto de contas entre fações da mesma podridão. Só espero que os brasileiros compreendam que as ameaças à sua democracia não estão todas vencidas.